Seria a água um recurso finito? Afinal, a água vai acabar um dia? Sempre que quisermos averiguar a veracidade de uma informação precisamos vasculhar a origem das ideias. Essa pergunta-premissa tem em sua origem uma falsa ideia de que o nosso reservatório de água doce, apesar de conter imensas porções de água, seja limitado. Mas ocorre que, a água que evapora, condensa, precipita, e infiltra na terra, abastecendo nossos reservatórios de águas doces, meus amigos, vem dos oceanos! Isso mesmo. Um ciclo natural que ninguém pode interromper. Logo, não podemos afirmar que a água é um recurso finito, uma vez que os continentes são abastecidos continuamente pelo seu maior reservatório: a água do mar. Porém, não são poucas as vezes que ouvimos a respeito de rumores de possíveis conflitos relacionados a escassez de água.
O geógrafo Luiz Bittar, em sua tese na área de geografia física, O Oriente Médio: o compartilhamento e a tecnologia revertendo a perspectiva de escassez hídrica e conflitos¹, mostra que os avanços relacionados à produção de água doce estão revertendo a ideia de escassez de recursos hídricos. Sabemos que existem diversas regiões com uma escassez hídrica natural, mas isso não deveria implicar necessariamente em uma realidade de escassez hídrica permanente. Ele alerta sobre a importância de rever conceitos repetidos insistentemente pela mídia, por formadores de opinião e acadêmicos – informações que acabam sendo absorvidas como verdades pela população, em virtude de uma reprodução sistemática. O grande problema é que são, em sua grande maioria, paradigmas infundados, ou fundamentados no senso comum. Questões como “a guerra da água” e conflitos relacionados de forma causativa à escassez hídrica são desmitificados a partir de dados que provam uma evolução constante em direção a soluções para o abastecimento hídrico, sobretudo em regiões carentes de um abastecimento natural. Em sua tese, o pesquisador revela que, ao contrário da ideia malthusiana e fatalista que culmina em uma realidade de escassez e falta, a presença de uma boa gestão e da tecnologia poderiam (e podem, atualmente) subverter o gráfico natural. Dessa forma, precisamos considerar a administração humana e a ideia de compartilhamento do recurso mais abundante na terra, uma vez que estes fatores estão em crescente evolução, conforme afirma Bittar: “Os arautos do conflito decorrente da escassez da água não consideram devidamente as possibilidades técnicas e de planejamento para o equacionamento dos problemas de abastecimento para as populações”². Assim, nos parece que as variáveis: compartilhamento das bacias hidrográficas, e crescente inserção tecnológica no processo de produção de água – tornariam a ideia da escassez relacionada ao conflito da água no Oriente Médio, inexistente. Sobre o mito da “guerra da água”, ele conclui: “não existem registros de conflitos por disputa de recursos hídricos, apenas algumas tensões políticas ou diplomáticas em alguns casos específicos. A maior parte das 261 bacias internacionais existentes no mundo é gerida por meio de acordos que asseguram o compartilhamento de suas águas”.

O fato é que, apesar de haver algumas regiões com escassez hídrica natural, a ideia de “crise” também precisa ser reformulada, uma vez que o problema, na realidade, é uma questão de acesso, de gestão e não de disponibilidade. Em um estudo realizado na Universidade de Vitória, no Canadá, é possível constatar um número de tirar o fôlego: uma fonte de pesquisa que identifica um número de cerca de um milhão de bacias hidrográficas, e outros 40.000 modelos de águas subterrâneas. Estes dados resultam em nada menos que 23 milhões de quilômetros cúbicos de água subterrânea no mundo! Em coluna para Carta Educação, Luiz Venturi afirma que a quantidade de água doce existente em nossos aquíferos está acima da capacidade humana de utilizá-la: “apenas a quantidade de água que precipita anualmente só na superfície dos continentes (cerca de 110 km³) já seria capaz, se fosse armazenada, de suprir toda a humanidade”³. E a boa notícia: o maior aquífero do mundo encontra-se sob a Bacia Amazônica – isso mesmo, se tem uma coisa que o Brasil é próspero é em água! O pesquisador afirma que somente este reservatório, Alter do Chão, teria uma capacidade disponível de suprir por três séculos a humanidade! O geógrafo esclarece que tudo isso é possível porque este e muitos aquíferos são carregados continuamente por infiltração de águas que se precipitam da atmosfera e vem dos continentes. O ciclo hidrológico, ou ciclo da água – é um sistema contínuo, ininterrupto e sustentável, ele nunca deixará de funcionar e, portanto, nunca deixará de abastecer nossos reservatórios. Urge a necessidade de repensarmos seriamente a ideia de que a água no mundo pode se esgotar um dia.
Voltemos ao Brasil, fica clara a necessidade de uma substituição da perspectiva de escassez para uma perspectiva de gestão, quando olhamos atentamente para o paradoxo existente na região do Amazonas: a região com um dos maiores potenciais hídricos do Brasil, contudo, o lugar onde menos se tem acesso a água potável em região urbana. Em uma entrevista concedida a rádio da USP, o geógrafo reitera que a mesma realidade pode ser vista na Síria e no Iraque, países providos de um potencial hídrico extremamente abundante (pelo fato de serem banhados pelos rios Eufrates e Tigre), entretanto, estão no ranking de países com o menos acesso à água potável da região. E ainda: existem regiões no mundo que apresentam um nível crítico de aridez e escassez natural de água para consumo, entretanto, por causa da inserção tecnológica, estes países conseguem dispor de um abastecimento de água no nível dos países europeus.
Além da água de reuso e, outros métodos a se considerar, a dessalinização apresenta-se como grande agente de transformação em regiões áridas. Em termos práticos, segundo o professor da Unesp, Jefferson Nascimento de Oliveira: “Dessalinização é o processo de remoção dos sais dissolvidos na água do mar ou nas águas salobras subterrâneas, produzindo água doce” 4. Então, vamos começar falando de Israel, considerado o líder mundial na reutilização de água. Uma região situada em território desértico (60% do território), na qual, atualmente, quase 100% do consumo de água doce vem da dessalinização! Israel recicla e trata 90% de sua água. E também dispara à frente no setor energético, com 93% das residências utilizando energia solar. Um país agrícola, no meio do deserto, e quase metade da irrigação é feita mediante água dessalinizada. Converter a escassez em abastecimento. Cada vez mais as pessoas estão repensando a questão da escassez como uma questão de falta de acesso, e o custo para implementação – em investimento, com retornos incalculáveis. Como em qualquer processo de avanço tecnológico, à medida que o tempo passa, a tecnologia vai se tornando mais acessível e mais barata. A “dessalinização” pode requerer um custo “salgado”, hoje, mas certamente cada vez menor com o tempo. Sobre isso, o pesquisador aponta: “10 anos atrás eram necessários 15KW de energia para cada metro cúbico, hoje conseguimos produzir 1 metro cúbico de água potável com 3.5 KW”. Outra questão que realmente precisamos considerar: as energias inesgotáveis, como a solar e a eólica, estão tornando-se cada vez mais crescentes e acessíveis. E já existem usinas de dessalinização que são movidas totalmente a energias eólicas. Estamos avançando velozmente em direção a um novo mundo.
É importante ressaltar, porém, que o objetivo do esclarecimento nessa coluna é combater o mito da escassez e não incentivar o dito “desperdício” deste recurso natural. Neste aspecto, seria interessante também optarmos pelo conceito de “economia”. Benjamin Radford, em artigo para a revista Science Contributor, com muito bom senso, nos convida a repensarmos a ideia de “desperdício” relacionada ao consumo de água, afirmando que a água, na verdade, nunca “desperdiçada”, tendo em vista o ciclo no qual ela se origina e prossegue em seu curso. O que ocorre é que ela simplesmente se desloca de um local para o outro. O mesmo que sabemos ocorrer com ciclo do carbono e do oxigênio. Lembramos Lavoisier: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. O fato é que a água nunca é “perdida”. O que perde é energia, pois é necessária energia para tratar e distribuir a água.
Trata-se apenas de reconstruir a realidade por meio dos fatos, e de não aceitarmos tão passivamente os alarmes que a mídia faz sobre o assunto. Quando ouvimos que existe um conflito em torno da água, e que no futuro a guerra não será pelo petróleo, senão pela água, vemos uma perspectiva claramente fatalista da situação. Para vencer o fatalismo, precisamos ir aos fatos. Indo aos fatos, vencemos o medo – que é disseminado por premissas baseadas em inverdades, pelo desenho de um panorama trágico, ou desconhecido, carente de soluções visíveis.
Por não ser uma perita no assunto, nesta coluna recorri a pesquisadores que refutaram a minha desconfiança a respeito do paradigma da água. Em especial Luiz Antônio Bittar Venturi, que me pareceu tão claro e sóbrio sobre o assunto. E se você deseja ter acessos a suas pesquisas, você pode encontrar algumas referências logo abaixo desta coluna. Quando questionado sobre certa preocupação por parte de educadores de disseminar a ideia de que não há falta, Venturi foi capaz de resumir o meu incômodo diante de publicidades sensacionalistas, atingindo o ponto nevrálgico da coisa: “Não devemos educar pelo medo”. E este é o meu ponto. Realmente acredito que quando educamos pelo medo não geramos conscientização. A conscientização vem pela compreensão da realidade como um todo, e de todas suas variáveis. Por vezes, exige uma investigação mais apurada e inconformismo diante dos paradigmas na forma como são apresentados. O medo prevê no máximo dois caminhos. Ou isso ou aquilo. Numa relação de causa e efeito, e sem abertura para novas possibilidades. Sim, temos que conscientizar sobre a realidade de escassez em muitas regiões – e ensinar sobre economia. Mas também a respeito da boa administração, dizendo a verdade: “Não é que acabou. É que não chegou.” E ensinar por que não chegou. Mostrar os métodos existentes, seus custos e retornos a longo prazo. E quando o custo é investimento. Que afeta futuras gerações. Estimular a busca por soluções. Assim educamos, instigando a busca por soluções. Validando as existentes. Investindo naquelas que apresentam resultados. Conceitos incutidos pelo medo restringem a visão à apenas uma perspectiva – e se uma das variáveis não funcionar, teremos um problema.
Em suma, moramos no Planta Azul, e se tem uma coisa que não faltará por aqui, é água. Afirmar que a água vai acabar, como vimos, não se assenta em base científica, mas em perspectivas fatalistas que parecem atender a interesses ideológicos e prover um peso maior à indústria da mídia. Segundo a Associação Internacional de Dessalinização (IDA), este método já é utilizado em 150 países. O governo brasileiro já vem projetando a implementação desse tipo de tecnologia no Brasil há um tempo, e agora vem apresentando movimentos mais intencionais em direção a um resultado cada vez mais palpável. Os investimentos precisam continuar. É necessário também considerar o investimento em outros métodos, nas regiões áridas e semiáridas de nosso território – a água de reuso parece mais coerente em muitos casos, sobretudo para irrigação em terras agrícolas, no meio urbano para fins não potáveis e para a recarregar os nossos reservatórios. Este método merece grande atenção em nosso país. O importante é que estamos avançando, e as esperanças parecem culminar cada vez mais em uma realidade representada por soluções lógicas.
“Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, (…) E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes.” (Vidas Secas, Graciliano Ramos)

Karina Almeida (Colunista) Formada em Letras Português/Literatura pela Universidade de Brasília, é professora de Português e revisora de textos pela Editora Chara e revisora/colunista no Relevante News.
Fontes:
¹ https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/8/tde-14032013-104333/publico//2012_LuisAntonioBittarVenturi.pdf
² p.33, https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/8/tde-14032013-104333/publico//2012_LuisAntonioBittarVenturi.pdf
³http://www.cartaeducacao.com.br/aulas/o-mito-da-estiagem-%E2%80%A8de-sao-paulo/
4 https://www.tratamentodeagua.com.br/dessalinizacao-cma/
https://www5.usp.br/96406/geografo-da-fflch-alerta-sobre-nocao-equivocada-de-falta-de-agua
https://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=mapa-mundi-aguas-subterraneas&id=010125151117#.Wk6x81SnHIVhttps://www.livescience.com/2639-water-shortage-myth.html
http://www.senado.gov.br/noticias/jornal/emdiscussao/escassez-de agua/materia.html?materia=dessalinizar-a-agua-e-cada-vez-mais-viavel.html
http://www.ebc.com.br/especiais-agua/solucoes-hidricas/
Acesse aqui a lista completa dos órgãos gestores da água do Brasil:
Mapa interativo dos aquíferos:
http://portal1.snirh.gov.br/ana/apps/webappviewer/index.html?id=6f1c6551a61e42ceb8bd77ba0e784d99